JT – Fale-me um pouco de sua formação.
JM – Desde cedo me apaixonei pela pintura. Aos 11 anos pintei meu primeiro quadro a óleo. Dispunha da ótima biblioteca de meu pai, fascinava-me com as reproduções e analisava-as minuciosamente. Devo dizer que depois da literatura o que meu pai, o escritor Marques Rebelo, mais gostava era das artes plásticas, muito embora fosse incapaz de dar um traço, e acredito que para não enfrentá-lo em uma área na qual ele era um mestre, escolhi aquela exatamente que ele menos dominava, a pintura. Uma defesa que a psicologia pode explicar. Além do mais nossa casa era muito frequentada por artistas como Iberê Camargo, Santa Rosa, Pancetti, Milton da Costa, até mesmo a Tarsila do Amaral quando ela vinha ao Rio, e muitos outros. Mostrava meus rabiscos e recebia uma boa orientação. E comecei também a ler livros dos próprios artistas como o Tratado da Pintura do Leonardo da Vinci, os diários de Delacroix, Redon, Ingres, as cartas de Van Gogh, os pensamentos de Braque, o Tratado da Paisagem de André Lhote, a teoria da Arte Moderna de Klee, e por aí vai. Isso me marcou muito e hoje compreendo que comecei certo, isto é, pelas fontes primárias.
Em 1956, depois de terminar o curso científico meu achou que seria bom eu entrar em uma faculdade de arquitetura. Bati o pé, queria ser pintor e meu pai então cedeu e arranjou duas bolsas, uma do Itamarati e outra do governo francês, para que pudesse estudar em Paris orientado pelo grande artista argentino, Emilio Pettoruti. Viajei em 1956 voltei em 58. Lá me apaixonei por Poussin, Cézanne, Braque e outros como Jacques Villon. Minha formação foi toda francesa, e não americana que foi muito influenciada por artistas como Picasso, Matisse, Caravaggio, Duchamp.
Hoje percebo como foi importante para mim essa formação. Me permitiu construir um discurso dentro da própria pintura e não um de fora, a partir de fontes secundárias como as análises dos historiadores de arte, livros teóricos de filósofos, críticos, etc. Claro, devemos lê-los, mas primeiuro gtemos que estudar as fontes primárias. Depois, maus tarde, fui analisar os artistas americanos, como Frank Stella, Roy Lichtestein e outros que também têm discursos dentro da própria pintura.
Creio que cabe aqui um exemplo.
Questiono muitos dogmas criados pelos historiadores de arte e como exemplo cito um deles que é a afirmação de que Leonardo introduziu o e sfumatto em pintura. Isso não é uma questão teórica e sim um procedimento. Leonardo se interessou foi pelos limites de cada corpo e o modo como serpenteiam. Uma questão tão complexa que só esse ano creio q consegui entender.
JT – Sei das atividades de seu pai, o escritor Marques Rebelo, no campo das artes plásticas. Fala-me agora dessa atividade e como ele te influenciou.
JM – Verdade. Em fins de 1945, logo depois da guerra, quando se desenhava um outro mapa geopolítico, meu pai levou para os paises do cone sul, no sentido de promover uma aproximação cultural, uma exposição de nossa pintura moderna. Pela primeira vez nossa produção artística moderna saiu do Brasil e dela resultou o primeiro livro escrito por um crítico estrangeiro sobre nosso pintores. Refiro-me ao livro de Romero Brest, Viente Artistas Brasileños. Com o apoio de Jozias Leão, depois de 1948, viajou por diversas capitais e cidades brasileiras, Salvador, Belo Horizonte, Porto Alegre, Floripanópolis, Rezende, Cataguases, levando exposições com obras de nossos pintores modernos e da Ecole de Paris, como Matisse, Leger. Lurcart. Marie Lauricin, Vlaminck, Derain e outros. Varios museus foram criados, inclusive o de Santa Cantarina, o primeiro museu de arte moderna a funcionar de fato no Brasil. Seu projeto era o de criar um museu no Rio de Janeiro que centralizasse as atividades dos demais museus. Como disse, tinha o apoio do Jozias Leão, embaixador que serviu na Europa durante a guerra e que formou uma coleção com mais de duas mil obras de arte da maior importância: Braque, Picasso, Matisse, Leger, Klee, Mondrian, Juan Gris, Morandi, Kandinsky, Magritte, Ernst, enfim, todos os nomes significativos da arte moderna europeia. Seu objetivo era o de doar essa coleção para o museu que seria criado. Até que um dia marcou-se uma reunião para criá-lo. Quarenta pessoas foram convidadas, trinta e oito compareceram, e por fim criaram os cargos, presidente, vice presidente e mais isso ou aquilo, um total de trinta e sete cargos. Somente uma pessoa não foi escolhida para nada, Marques Rebelo. O Jozias Leão, por solidariedade, não mais quis doar sua coleção para o museu nascente. Tentou então apoio dos governos estaduais e federais para criar um museu para sua coleção. Nada consegui. Amargurado vendeu toda a coleção para o exterior. Triste saber o que o Rio perdeu! Meu pai nunca mais quis saber das politicagens que envolvem as artes.
Tive o privilégio de frequentar a casa onde essa enorme coleção estava abrigada. E claro, por total desaprovação com o rumo que o novo museu tomou, segui meu caminho. Já tinha tido contato com uma arte maior e não podia me interessar pelos cursos que o novo museu oferecia.
JT – Você esteve longe do Rio e agora está retornando. Como foi esse período de 5 anos em Florianópolis longe de sua cidade natal?
JM – O que já te disse pode explicar o porquê de ter vindo morar em Florianópolis. Fiquei marginalizado, fora do circuito artístico. E a crítica foi muito intolerante com meus trabalho, Cheguei a abandonar a pintura por duas vezes, de 1961 a 64 e de 1968 a 73. Quando realizei minha primeira exposição já tinha 40 anos. Logo depois fui convidado para ser professor do MAM Rio. Depois para a Escola de Artes Visuais do Parque Lage, Assim me foi possível dar prosseguimento as minhas pesquisas. Consegui editar meu primeiro livro, A Cor e o Cinza. Mas a tarefa foi árdua, com graves problemas financeiros e com a saúde comprometida, não tive outra alternativa e me mudei para Florianópolis por insistência de minha filha. Na nova cidade continuei trabalhando, pintando dando minhas aulas, editei meu segundo livro, O cromatismo Cezanneano e terceiro livro, Pintura, cores e coloridos. Mas de uma certa forma me acomodei. Não pretendia voltar para o Rio. Graças a você, Jandira, voltei e recomecei a dar aulas na escola de Artes Visuais do Parque Lage. Sinto-me agora mais criativo e e com muitos planos.
JT – Quais as sua perspectivas quanto as suas descobertas?
JM – Essa volta ao Rio me enriqueceu muito. Consegui finalmente entender melhor o que Leonardo disse sobre o serpenteamento e qual e relação com o cinza sempiterno. Entendi também a estrutura cromática de Rembrandt. E já tenho 78 anos. Que isso sirva de exemplo para os jovens artistas que estão começando. É longa a caminhada que uma artista tem que percorrer. Tem-se que ter esperanças, paciência e capacidade de superação.
JT – Você é um artista muito bem considerado entre seus pares. Como vc vê esse reconhecimento?
JM – Creio que esse reconhecimento decorre do fato de que muitas pessoas percebem que o mundo está mudando e que é necessário uma nova mentalidade, novos valores, etc. Desde o princípio segui minha intuição que ainda cresce com o conhecimento que venho adquirindo. Alguns amigos artistas me dizem que eu não criei, eu fundei. Cito aqui um pensamento de Braque: “Cézanne não construiu, ele fundou. A construção pressupõe um preenchimento.” Me pergunto então: o que deve ser fundar em um pais afunilado em uma zona distante dos centros hegemônicos? Claro, trabalhamos para sermos reconhecidos. Melhor ainda se esse reconhecimento vem de seus pares.
JT – Você lançou seu terceiro livro, e como você mesmo diz, estão ainda inconcluso como os outros. Pretende continuar escrevendo?
JM – Escrevo para pintar, afinal arte é coisa mental. Continuarei pintando e, portanto, escrevendo também. É bem possível que um quarto livro apareça. É um compromisso que tenho com a pintura, minha cidade, o Rio de Janeiro e com o Brasil.