Paula: Você busca a base de tudo o que vemos, aquilo que está oculto por trás de toda cor, aquilo que o olho não alcança. Essa busca é, na verdade, a tentativa de entender o mundo como dicotomia entre superfície e profundeza, e a tentativa de entendimento dessa lógica?
JM: Tenho mais de 60 anos de estrada. Daí responder às perguntas considerando, sobretudo, o que me ocupa atualmente. Isso não me exclui de levantar algumas considerações históricas. Uma delas é a questão da cor, que sempre foi muito recalcada em nossa cultura, sendo considerada, por exemplo, por nomes como Aristóteles e Kant como uma coisa supérflua. A cor sempre me interessou. Outra: a questão da dicotomia superfície profundidade. A perspectiva científica foi uma conquista da Renascença. Creio que o primeiro pintor a enfrentar a dicotomia superfície/profundidade tenha sido Caravaggio quando pintou uma natureza morta que está em um museu de Milão.
Essa natureza morta é construída toda baseada no número de ouro. Esse quadro prenuncia o quadro objeto em substituição ao quadro janela. O curioso que nela a cor é muito pouco explorada, daí Poussin ter afirmado que Caravaggio foi posto no mundo para acabar com a pintura. Põe em questão, asssim, a discussão entre desenhistas e coloristas. Já Cézanne afirma que quanto mais a cor se harmoniza, mais a forma se precisa.
Já a questão da planaridade foi apontada por Grimberg em meados do século XX como a única característica da pintura não compartilhada com nenhuma outra arte. Dizia ele então que os pintores deviam considerar apenas a superfície plana. Como meus interesses sempre colocaram as cores em primeiro plano procurei estudar os pintores coloristas, desde os venezianos, passando por Leonardo, Poussin, Chardin, Delacroix, Braque, além de outros, mas sobretudo Cézanne. Este dizia que a luz não existe para o pintor. Dizia também que somente um cinza reina na natureza. Daí ter chegado ao cinza sempiterno, que não existe, mas é potencialmente ativo, como o vazio cheio da física quântica. Neste caso é um pós ou pré fenômeno. As cores simultaneamente para esse cinza convergem e divergem. Estudei também o serpenteamento, levantado por Leonardo no Tratado da Pintura. E nele está dito que devemos observar com muito cuidado os limites de cada corpo para observar como serpenteiam. Ou seja, como dão vida à pintura. Nas histórias das artes sempre está dito que Leonardo introduziu o esfumato na pintura. Esfumato é um procedimento e não uma questão teórica. Tudo isso está me fazendo pensar em uma geometria das cores na qual entra em jogo outras dimensões do espaço plástico, inclusive as temporais, portanto uma lógica, como diria Cézanne, nada absurda. Estou tentando entender quais as formas dos coloridos. Entra aqui a geometria dos fractais, na qual o cinza sempiterno é sempre uma constante, seja no todo ou nos fracionamentos deste.
Paula: Para entender mais sobre pintura, você passeia em outras áreas de conhecimento, também elas feitas de contrastes, rompimentos e escolhas justas. Essa visão de conjunto e interdisciplinar permite entender e perceber melhor a própria pintura?
JM: Certamente que sim, mas hoje penso também na transdisciplinaridade. No mundo tão facetado no qual vivemos, agravado por um neo liberalismo inqualificável, não vejo outra saída. Assim a arte pode ser entendida como um sobrevôo.
Paula: Em uma das frases citadas de Cézanne, ele dizia que pintar é contrastar. Escrever também é um exercício de contrastar? De dialogar, e de experimentar limites e serpenteamentos?
JM: A literatura não é a minha área, mas sempre gostei de ler romances e poesias. Aliás, tive um professor, o aquiteto Aldary Toledo, e eu tinha meus 14 anos, que me disse que se aprende mais pintura lendo-se poesia. Nunca me apeguei muito a livros teóricos, li alguns apenas. Aqui seria interessante citar Gauguin. Este dizia que os pintores em nenhum caso deveriam se ocupar com os homens de letras, referindo-se aos teóricos. Estes criam dogmas que desorientam não somente os artistas, mas o público em geral. O caso do esfumato que citei acima pode ser um bom exemplo. Mas acredito que em literatura há os exercícios de diálogos, de experimentar limites e serpenteamentos. Quanto a este último penso que há uma “linha” que dá vida aos textos literários. Quanto à poesia me agrada o fato que ela se utiliza na maioria das vezes das palavras remotas. As palavras imediatas têm, com observa Valery, muito poder. Creio que é por isso que Braque diz que escrever não é descrever.
Paula: Na pintura, as cores vizinhas e o tempo de observação são capazes de alterar a percepção de uma obra. Também na literatura, as obras vizinhas ou próximas e o tempo de apreensão (de amadurecimento) é capaz de alterar a percepção do leitor?
JM: Quando leio romances, e sobretudo poesias, percebo como as palavras remotas têm a capacidade de uma ressonância que quanto mais amadurecemos, mas as percebemos como podem alterar a percepção do leitor. Talvez seja oportuno citar aqui uma frase de Júlio Castañon Guimarães de seu poema em prosa intitulado Friagem: “Do escuro então lhe perpassou pela pele, num raspão, algo como uma palavra remota.”
Paula: Geralmente você cita poesias que retratam seus questionamentos no estudo da pintura, considerando que ambas as artes refletem o que está “além do visível, e que só uma sensibilidade especial pode ver e fazer com que possamos vê-la”. O que poesia e pintura mais têm em comum?
JM: Voltemos ao Leonardo quando ele diz que a pintura é uma poesia muda. Mas como disse acima, que tem vida, assim como a poesia. O pintor ou poeta dão vida a suas obras, graças ao serpenteamento, às palavras ou espaços remotos, etc., muito embora não podermos descartar os espaços imediatos, muito presentes na arte contemporânea, e aqui completamos a frase de Braque citada acima:”Pintar não é representar.”
Paula: Você também sugere que boas telas e poesias devem ser provocações (provocações de ânimos, de reflexões). O que torna o trabalho do artista um produto da Arte? Seu momento prévio de inspiração, ou seu momento posterior de apreensão pelos múltiplos indivíduos espectadores/leitores?
JM: Arte é uma coisa bem complexa e talvez ainda nem saibamos o que ela realmente é. Por isso talvez seja oportuno lembramos de Espinosa. Epistemologicamente ele fala dos três estados para alcançarmos um ponto mais abrangente. Diz ele que primeiro tomamos conhecimento das coisas. No segundo racionalizamo-nas. No terceiro ele se refere à intuição com conhecimento, ou seja, o momento que somos mais capazes de produzir do que criar, uma vez que para o filósofo na produção há a criação. Obviamente nesta última é importantíssimo a experiência, o amadurecimento, etc.
Termino, então, esta entrevista mostrando um quadro de minha autoria, realizado há mais de dez anos, denominado Esse Azul, quando já me sentia atraído por uma geometria das cores.